Paulo Camelo

Poesia é sentimento. O resto é momento.

Textos

Gatuno trapalhão
— Peguei-te, ladrão safado!
As palavras do investigador soaram raivosas e excitadas, pelo inusitado de ter posto as mãos no ladrão que estava lhe tirando o sono.
Os roubos nas casas das redondezas da delegacia onde trabalhava estavam sendo freqüentes, e não havia pista alguma sobre a autoria.
— Agora tu vais contar tudinho ao delegado!
E lá foram eles para a delegacia, acompanhados do denunciante, Urbano, morador da última residência que Zarolho, o ladrão, tentara roubar.
Chegando à delegacia, ouvida e registrada a queixa de Urbano, o delegado, também excitado com o flagrante raro e oportuno, dispôs-se a ouvir Zarolho. Escrivão a postos, iniciou o interrogatório.
— Então, Zarolho, foi pegado com a boca na botija, heim?
— É, doutor, um dia é da caça...
— Conte-me tudo. Tudinho! Quero ouvir sua história. Mas não se livra dessa, não, ouviu?
— ‘Tá bem, Doutor. Vou contar.
O delegado Moreno dá as primeiras instruções ao escrivão, preâmbulo do auto do interrogatório, identificação do depoente etc.
— Aos treze dias do mês de agosto de mil, novecentos e noventa e três, perante mim, delegado, compareceu o indivíduo José de Souza Silva, conhecido por Zarolho, preso em flagrante após tentativa frustrada de roubo a residência...
...
Eu estava zanzando por aí com Bira, procurando uma boca pra faturar. A gente ia passando por uma rua meio deserta, com umas casas boas, mas nem tanto.
— Zarolho, vê aquela casa. Muro alto, portão fácil de abrir, beleza pra gente.
— É, Bira. Dá pra gente se esconder enquanto rouba. Esses doutorzinhos bestas pensam que muro alto defende eles...
Bira deu uma risada, satisfeito.
— Deixa eles pensar, Zarolho. Assim a gente tem mais casa pra entrar, e fica protegido pela proteção deles.
A gente estava conversando ainda, quando o portão de carro se abriu e foi saindo um Fiat, dirigido por uma moça. Ela estava com pressa, acho, e não fechou logo o portão. Deu tempo pra gente entrar e ficar um pouco na moita.
Prendi o portão, pra não fechar. Só uma brechinha, pra ninguém da rua ver a gente.
Por ali um pouco, e tudo calmo.
Peguei o revólver e fui andando.
A gente entrou por trás, pela porta da cozinha. Abertinha... Beleza.
Devagar, a gente foi assuntando.
Dois boyzinhos numa salinha, vendo TV, sem pestanejar.
Bira ficou de tocaia, e eu entrei.
Na sala grande, ninguém. Vazia. Tinha um relógio na parede. Peguei e levei pra Bira.
Voltei. Só boyzinhos ainda vidrados na TV.
Passei e fui pro primeiro quarto. Tinha um homem dormindo.
Fui de fininho pro segundo quarto. Vazio. Vazio também o terceiro.
Nada ali pra pegar fácil.
Voltei pro quarto onde o homem estava dormindo. Entrei e ouvi barulho no banheiro.
Bati na porta, com pouca força, pra ver se o homem não acordava.
Ouvi lá de dentro:
— Que é, velho? Já vou sair.
Bati novamente.
— Já vou! Calma!
Saiu uma mulher, ainda meio molhada do banho. Me viu e foi dizendo:
— Que é isso, meu senhor? O que é que o senhor quer aqui?
— Isso é um assalto, dona. E fica calada pro homem não acordar.
E a mulher, nem aí... Falando mais alto ainda:
— Que é que o senhor quer? A gente não tem nada, não!
Foi saindo e tropeçou na cama.
— Calma, dona! Se acordar ele, é pior!
— Não tenho nada, não, meu senhor!
Ela continuou falando alto, e bateu novamente na cama, como quem estivesse desequilibrada.
Saquei que ela queria acordar o marido, e fui logo pra perto dele.
— Que é que o senhor vai fazer aí? Já disse que a gente não tem nada!
O homem acordou, meio atarantado.
— Isso é um assalto. Vai levantando logo.
— Calma, meu senhor! Deixe eu me acordar primeiro!
— Isso é um assalto. Levanta rápido! Me passa o dinheiro!
— E você acha que eu durmo com dinheiro, é?
— Sem brincadeira comigo!
— Sem brincadeira nenhuma. Não durmo com dinheiro, não.
Eu já estava me irritando com aqueles dois. Mas tinha os dois meninos na sala, e eles podiam notar, fazer alguma coisa...
— Levanta logo. Abre a gaveta. Me dá o dinheiro.
— Já lhe disse que não tenho dinheiro. Veja.
Ele abriu a gaveta da cômoda. E não tinha dinheiro nem jóia.
Fiquei meio perdido. Tinha que pegar alguma coisa. E tinha que ser pequeno, porque a gente não estava com carro.
—Vamos logo! Prá sala.
Voltei-me pra mulher e mandei ficar na porta. E falei pro homem:
— Primeiro me dá tua arma.
— Que arma? Danou-se!
— Danou-se o quê?
— Tu querendo que eu tenha uma arma, agora!
— Abra a outra gaveta! Logo!
Ele abriu a outra gaveta. E não tinha nada também.
— Vamos pra sala.
Levei os dois pra sala. Bira já estava lá, e os meninos ainda não tinha visto a gente.
Bira veio em minha ajuda, e eu fiz sinal pra ele ir pra salinha de TV.
Os meninos viram a gente entrando, com os dois na minha mira. Gritaram.
— Não grita nada! — eu disse.
Olhei prum lado, só vi almofada no chão. No outro lado, um som, difícil de ser tirado, tanto fio que tinha, com caixas grandes.
Só restava o videocassete. Peguei.
Quando eu estava dando o vídeo pra Bira levar pra fora, o homem caiu no chão, se estrebuchando.
A mulher gritou, desesperada.
— Acuda, gente, Bano tá morrendo!
Quem ia acudir? A gente?
Os meninos abriram também no berreiro, cada um gritando mais alto.
Eu estava já pensando em passar bala em tudo e cair fora logo.
Mas o homem ‘tava lá no chão, batendo e babando...
E a mulher gritando, cada vez mais alto.
Eu só ouvi o nome dele: Bano. Sabia lá se ia aparecer mais alguém?
Bira ficou logo nervoso. Pegou o vídeo e correu pra fora.
E eu fiquei ali, arma na mão, apontando pro menino mais velho, e olhando o homem no chão, tremendo...
E a mulher gritando. E os meninos gritando.
— Calados, se não eu atiro!
Aí é que eles gritavam mesmo.
— Deixa eu pegar ele, moço! Ele está morrendo — a mulher gritou pra mim.
Aliás, ela gritava desde sempre.
Bira gritou lá de fora:
— Melou, Zarolho! Vem!
E eu corri. Deixei o homem lá morrendo, e os outros três gritando.
A gente pegou o vídeo, o relógio e saiu pelo portão, mais que depressa.
Tava ali, tentando entrar, uma D20, com um cara no volante.
Ele desceu, já com uma 12 na mão.
— Que vocês estão fazendo aí?
— Nada, não, doutor.
E aparece, por trás de nós, com um revólver na minha cabeça, o homem que estava estrebuchando naquele instante.
Pegaram a gente e chamaram o polícia que morava na outra casa.
Por isso me pegaram, doutor. Só trapalhada.
...
Findo o interrogatório, o delegado manda prender os dois gatunos.
Deixou para ouvir Bira depois.
Voltou-se para o queixoso e perguntou:
— Quer dizer então que o senhor não estava morrendo?
— Não. Eu só tinha uma saída. Encenar um ataque. Minha mulher e meus filhos entenderam e fizeram a parte deles.
— E a D20 que chegou na hora?
— Arte e sorte andam juntas. Era meu irmão que estava chegando de viagem.
Zarolho, ouvindo aquilo, repete:
— Trapalhada, né, doutor? Só trapalhada.
Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 04/11/2011


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