Cotidiano
Undécima hora, sol a pique,
suor no rosto, a mão, olhar cansado, um quê de quem não tem o que perder, um ar de quem tem pouco a ganhar. Não há em seu semblante muita coisa que se possa dizer que é marcante. Não existe na face uma ruga que não seja uma marca do viver. Fraco, magro, amarelo, triste, a perna enrijecida de uma artrose, uma barriga grande, uma ascite, dum banho uma esquistossomose. O campo a lavrar, o milho seco, a roça por colher, farinha crua; o forno esquentou, coloca a massa e mexe, mexe, mexe, sem parar. E quem irá comprar? O mundo é outro, agora, é negócio; não tem aí muito jeito, não, mas... e daí? Vende a farinha, traz dinheiro. O feijão secou, milho também. Colhe mais a roça, e dela faz mais farinha. E vende, colhe o milho, o feijão (o que sobrou da seca dura) preto, pois o pardo murchou. É duro. Duodécima hora, ainda o sol, a fome, a sede, o gosto da comida na boca. Na boca, feijão com farinha. O sol se foi, o chão. A rede rasgou ontem, a esteira nova ainda coça nas costas nuas ao deitar. É madrugada. O galo canta. O sol já vem. Levanta e vai à roça. A terra seca (ontem não choveu). Milho, feijão, secos. A farinha ainda crua, o suor no rosto. Undécima hora, sol a pique.
Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 20/07/2005
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