Paulo Camelo

Poesia é sentimento. O resto é momento.

Textos

Os ovos
Zé Preto tinha fama de aguardenteiro, cachaceiro, pinguço... Fama que não o incomodava, entanto.
Era cambiteiro no Engenho Onça. Diariamente, saía, juntamente com os outros, ao local do corte, para tombar as canas para a moagem.
Às 10 horas, no intervalo de descanso para almoço, ele se aproximava do depósito de aguardente e tomava seu gole. Sempre com a característica careta que o tomador de aguardente faz, ao fim do gole.
— Aaarre!!! Coisa ruim! — dizia, acompanhando a expressão com uma costumenra cuspida de lado.
Voltando ao cambito, ia como que nas nuvens, alegre, ativo, cheirando a cachaça.
— Zé Preto! — chamava Vicente, companheiro de cambito. — vamos tomar uma no sábado, na venda de Abílio!
— Tomar outras. Umas eu tomo todos os dias.
— Mas em Abílio a gente bate uma conversa melhor, tem uma charquezinha pra acompanhar...
— E precisa?
— Precisa, Zé. Cachaça pura é ruim demais.
— Eu nunca disse que é boa.
E assim eram as conversas dos cambiteiros, à espera de que fosse completada a carga dos cambitos e pudessem descer a ladeira, de volta ao engenho.
Zé Preto, sempre alegre, sempre “queimado”. Mas na ativa, sem perder um dia de trabalho, sem falhar nem fazer corpo mole, por conta da cachaça.
Contam uns que ele, certa vez, em um rala-bucho, tomou cachaça de cair.
— Zé Preto! Levanta, bêbado safado!
— Safado é tu – disse ele, em seu português coloquial errado.  — Safado é tu!
— Que é isso, Zé? ‘Tás perdendo a razão?
— ‘Tô não. Amanhã estou novinho, no cambito. E tu ´tás aí, gemendo de dor de barriga.
— Eeeuuuu? Vira tua boca pra lá!
Como disse Zé, no outro dia, 6 horas, estava ele já na cocheira, pondo a cangalha e os cambitos no seu burro, pronto para nova jornada, que só pararia às dez horas, na pausa para almoço.
— Aaarre!!! Coisa ruim!
...
O patrão, “Major” Zuzinha, gostava do trabalho dele, e não negava – como não o fazia com nenhum de seus trabalhadores – o gole de pinga sempre que quisesse. Desde que – e isso era dito com severidade – não falhasse no trabalho.
— Lembra Caetano? - dizia Zuzinha.
— Que é isso, Major? Eu sei me cuidar.
Caetano era a referência que o senhor-de-engenho tinha para exemplo.
Bom tombador, trabalhava como ninguém na alimentação da moenda com os feixes de cana. A rapidez com que desenlaçava o feixe e o punha entre os cilindros, já pronto para alcançar outro na mesa que ficava atrás, era reverenciada. E não deixava a moenda engasgar. Nem mais nem menos cana. Era no ponto.
Mas gostava também, como Zé Preto, de tomar suas aguardentes, vez em quando. O que não era nada demais para o comportamento normal dos trabalhadores, sempre em estresse de trabalho, sempre com o convite e a lembrança que o depósito de cachaça faziam em todos.
Num dia de moagem, Caetano tardou a chegar e “Major” Zuzinha pôs um substituto na tombagem da cana.
Caetano chegou, embriagado, e foi subir a seu posto. Mas, bêbado, não se equilibrava. E se apoiou, para não cair, nas engrenagens dos tambores.
Seu descuido custou-lhe 3 dedos da mão esquerda, uma dor de cabeça para o senhor-de-engenho e uma complicação. Para o resto de sua vida.
Levado às pressas para o posto de saúde da vila, ficou no estaleiro por 3 semanas.
Ao voltar, já não era o trabalhador ativo de antes. Sua mão já não segurava o feixe de cana. Teve que ser remanejado e reeducado para outra tarefa.
Ele passou a ser mero peso-morto na folha de pagamento do “Major” Zuzinha. Fazia mandados, vistoriava eitos mais distantes, controlava os cortes de banana... Nunca mais alimentou moenda.
...
— Que é isso, Major? Eu sei me cuidar.
— Que se cuide, Zé. Que se cuide.
Finda a jornada, Zé Preto foi à casa-grande, para pegar frutas e outros víveres que eram distribuídos aos trabalhadores.
Ali, quase diariamente, havia as frutas retiradas dos sítios e não comercializadas. Não era prioridade do senhor-de-engenho comercializar frutas. Sua fonte de renda provinha de cana-de-açúcar, de banana e laranja. As jaqueiras, mangueiras, os cajueiros existentes serviam apenas para subsistência, para alimentação dos moradores da propriedade.
Era outro momento para descansar a mente do trabalho do dia.
Entre uma manga e um caju, conversavam.
— Hoje consegui levar 10 cargas. E os feixes estão maiores – disse Vicente.
— Maiores como? — retrucou Zé Preto;
— Não viste que cada feixe tem agora 18 canas?
— E não são quinze?
— Eram quinze. Estão pondo 18, para ver se o transporte sai mais rápido.
— Mas e no tombamento na moenda? Não vai engasgar?
— Aí é só botar mais separado.
— Sim, Zé – entrou na conversa seu colega Didier, conhecido apenas por Dier – vamos tomar uma bicada?
— Vou já. Deixa eu pegar os ovos que Sá Mira guardou pra mim. Vou levar pra casa. A mulher quer fazer umas fritadas e me pediu que levasse uns ovos. Sá Mira me prometeu dar uns.
— ‘Tá certo. Te espero lá no depósito da destilaria. Enquanto tu não chegas, vou ver se aprendo um pouco da destilação com Zé Félix.
— ‘Tás querendo deixar o cambito, é?
— É bom, né? A gente sempre quer melhorar.
— Chego já.
Dirigiu-se à cozinha, e foi pegar os ovos que Sá Mira lhe prometera.
Pegou os ovos e os embalou, como havia aprendido com “Major” Zuzinha. Com jornal, ovo a ovo, para não quebrarem a um contato qualquer.
— Quando eu embalo ovos, o pacote pode cair, que os ovos não quebram – dizia Zuzinha.
...
Naquela tarde, o convite de Dier trazia uma razão a mais: ele queria comemorar com os amigos seu noivado.
— Gente, vou casar com Mocinha.
— É isso aí, Dier! Vai deixar a boa vida! —  disse-lhe Vicente.
— Boa vida nada! Isso é sofrimento – redargüiu Dier.
— ‘Tás reclamando de quê, Dier?
— Do cansaço que o cambito traz. É muito sol na moleira todo dia.
— Mas a cachacinha do almoço e da tarde dão um refresco.
— Refresco ruim!!! Aarreee!!! — e cospe de lado, como todos fazem.
— Mais um copo, Zé?
— Vamos lá! Hoje tem razão para mais uns.
Finda a farra pós-trabalho, foram para suas casas. Cada um tinha um pequeno sítio, cedido pelo patrão, como salário indireto. Ali os trabalhadores e familiares plantavam sua roça, seu milho e feijão, ajudando na alimentação.
Ficavam afastados do centro industrial da propriedade – o engenho propriamente dito – e era necessária uma caminhada, na maioria das vezes ladeira acima. Muitas casas ficavam nas terras de difícil utilização para cana ou banana.
E lá foi Zé Preto, a subir a ladeira de volta à casa.
Foi meio tocado, mais do que ficava. Ou melhor: mais do que não ficava, pois a cachaça diária não o perturbava.
Realmente, ele passara do ponto. A ressaca seria sentida.
Uma chuva fininha deixara a ladeira escorregadia. Mas em condições normais, não atrapalharia a subida.
Porém, Zé Preto, com o senso de equilíbrio alterado, escorregou já quando passava do meio da ladeira.
Desceu, em queda, rolando, mais de 15 metros. Machucou-se.
Ninguém viu.
...
Cinco horas da manhã, toca o apito, a chamar os trabalhadores ao engenho. Iria ser iniciada mais uma jornada de moagem.
Às seis horas, já com pressão na caldeira, é dado início à moagem da cana, com a sobra que ficou do dia anterior. Cana suficiente para manter o trabalho até a chegada de novas cargas trazidas pelos carros-de-bois e pelos cambitos.
Na cocheira, cuidando dos animais, é sentida a falta de Zé Preto. Ele nunca atrasava. Nunca falhava.
— Major, Zé Preto ainda não chegou.
— Chama Augusto pra pegar no cambito, até ele chegar. — ordenou Zuzinha. — Quero falar com ele antes de voltar ao trabalho. Não esqueça.
— Certo, Major. Deixe ele vir que eu dou o recado.
Dez horas, pausa para almoço e a caninha.
— Cadê Zé Preto? Ninguém deu o recado a ele?
— Ele não veio, não, Major.
— Manda alguém buscar ele em casa.
— Vai lá, Augusto – disse Dier.
Meia hora depois, chegam os dois. Augusto encontrou Zé Preto, já a caminho do trabalho, andando com dificuldade. Ainda tocado, mostrava escoriações por todo o corpo.
Zuzinha, rápido, foi cuidar dele, antes de lhe passar o carão devido.
— Chama Sá Mira lá na cozinha. Diz a ela que traga minha caixa de remédio. Vou cuidar dele.
Ao chegar com uma farmácia ambulante, com todo o material para primeiros socorros, Sá Mira vê Zé Preto arranhado, cabisbaixo, chateado com a situação, à espera do “rela” que levaria do “Major” Zuzinha.
— Que foi isso, Zé?
— Caí na ladeira ontem, Sá Mira.
— Caíste como, homem?
— Escorreguei na lama e rolei ladeira abaixo.
— Coitado!
— Foi queda feia, Sá Mira – disse Augusto, que já assuntara com Zé enquanto retornavam da sua busca.
— ‘Tô todo quebrado, Sá Mira – disse-lhe Zé Preto.
— Coitado!!! - repetiu ela. — Quebrou os ovos?!
Os outros se entreolharam, intrigados.
— Que pergunta é essa, Sá Mira? - recriminou Zuzinha.
— Ora, Major...- respondeu ela, sem entender a reclamação
— Quebrei não, Sá Mira. O pacote que fiz foi bem feito. Aprendi bem com o Major. — disse-lhe Zé Preto, entre risos e caretas de dor.

Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 14/01/2014


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