Quod mali perituri
A população de Pedra Pome vivia desconfiada de que algo no ar estava para explodir. Ouviam-se rumores de que, desde o dia em que impuseram uma coroa de espinhos em um peregrino andarilho, martirizando-o até a morte, os cipós de onde foram retirados os galhos espinhentos começaram a secretar uma substância avermelhada que, ao toque, deixava o indivíduo prostrado e dispneico. E todos os que tinham contato com essa pessoa começavam a sentir os mesmos sintomas, que também passavam para quem os tocasse. Deram a essa nova doença o nome de Coronam morbus, doença da coroa. Os idosos mais fracos sucumbiam ante tais sintomas, enquanto os outros tinham a remissão da doença após duas semanas. No entanto, aqueles que se isolavam por quarenta dias em suas cabanas, em vida de penitência, sem contatos, ingerindo líquidos e se banhando constantemente, saíam fortalecidos. A quarentena, como iniciaram a chamar tal atitude, era a expiação pelo martírio do andarilho.
Alguns curandeiros, invocando espíritos do bem, conseguiram inibir tal contágio, até seu encerramento. Para isso, utilizaram aquela seiva como alimento para coelhos, que, não sentindo nenhum sintoma, passaram a se alimentar do cipoal, até sua total extinção. Alegria na comunidade com o desaparecimento de tão dolorosos sintomas, os pedrapomenses fizeram uma grande festa, para agradecer a cura e remissão de toda a culpa que lhes era imputada. Séculos se passaram, sem que se notasse que os coelhos, ao serem abatidos por outros animais, deixavam o agressor em situação mórbida, que persistia por 14 dias, e voltava a se sentir capaz de novas caçadas. Os maiores predadores eram os lobos e, por não terem contato humano com facilidade, tais sintomas não eram notados. Passaram-se 1900 anos, quando cientistas começaram a identificar uma molécula diferente habitando animais selvagens, e o estudo arqueológico aprofundado os levou ao cipoal existente em Pedra Pome, nesse tempo já um lugarejo desaparecido e com quase nenhum registro histórico. Descobriram que tal molécula, não pertencente àqueles animais, transmitia-se por contato ou por secreções, mas não conseguia existir isoladamente. E, porque conseguia se transmitir entre animais de mesma espécie, chegaram à conclusão de que levava em si algum conteúdo mórbido, e chamaram-na de vírus, ou fluido venenoso. Isso abriu campo de pesquisa, e aqueles cientistas encontraram, até na espécie humana, algumas moléculas que tinham características semelhantes, cuja presença evidenciava alguma moléstia. Para diferenciar cada uma dessas moléculas, e retornando àquela inicial, cujo estudo retrógrado levou ao cipó usado para fazer a coroa de espinhos, e que inicialmente provocara o que chamaram de Coronam Morbus, denominaram tal molécula de Coronam vírus, o vírus da coroa. Sua observação microscópica, demonstrando ter semelhança a uma coroa, uma coroa de espinhos, alterou sua nomenclatura para Corona vírus. Décadas se passaram, até que outros cientistas, sem nenhum escrúpulo humanitário e com ânsia de deidade, provocaram mudança na molécula causadora do Coronam Morbus, e tal molécula, fugindo dos seus controles, conseguiu ser transmitida a seres humanos, sendo tais cientistas os primeiros acometidos mortalmente. Essa descoberta, em decorrência das mortes de seus pesquisadores/criadores, voltou ao âmbito do desconhecido ou mal estudado, até que um ambiente mundial propício levou a sua propagação. A humanidade, agora, está sendo contaminada pelo Corona vírus, que em era passada matou quem martirizou o andarilho. Agora, que lembramos o martírio daquele que, sendo filho de Deus, andou entre nós, e por isso, em virtude de ciúmes e maldade dos poderosos, recebeu a coroa de espinhos, estamos também sendo alvo daquela morbidade inicial. Sua profilaxia ainda é o isolamento. E os fiéis que veneram a santa passagem de Deus entre nós revivem uma frase então pronunciada pela comunidade pedrapomense: Quod mali perituri – O mal perecerá. Muitos seres humanos hoje transitando as trevas da maldade terão no Coronam morbus o seu fim. Recife, 5 de abril de 2020, Domingo de Ramos.
Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 22/03/2021
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