Paulo Camelo

Poesia é sentimento. O resto é momento.

Textos


E eu só queria votar...

Sete horas da noite, eu chego em casa
e me deito, cansado, no sofá;
a notícia que ouço me arrasa
e me prostro, exaurido, a meditar
que essa vida que levo é uma tortura,
o dinheiro que ganho é porcaria,
entretanto eles vivem na fartura
e inda dizem que ganham mixaria;
eu não sei se, com isso, eu chore ou ria
e decido escrever o meu penar.

Nasci pobre, de prole numerosa;
o meu pai, um rapaz trabalhador
que no ano de trinta uma formosa
e prendada donzela desposou,
teve dúzia de filhos, seis casais,
criou dez na pobreza e na decência
(o oitavo fui eu, quinto rapaz,
outras duas findaram a descendência)
e, nos vendo alcançar independência,
atirou-se ao estudo e se formou.

Minha infância foi simples, mas vivida,
eu cresci com saúde, com vigor,
mas a grana era pouca, era medida,
e bem cedo ingressei no meu labor
pra pagar meu estudo em boa escola
e sobrar uns trocados pro lazer,
mas, malandro, eu também jogava bola
e deixava outras coisas por fazer;
uma vida bem simples de viver
e um futuro almejado com fervor.

Nesse tempo o Brasil todo mudou:
“Capital era Rio mas, de repente,
o Planalto Central se transformou
pra cumprir decisão do presidente
e passou a ter nova Capital;
nordestino foi logo convocado,
avião transportou areia e cal
para que se cumprisse o decretado;
em abril se escolheu um feriado
e Brasília nasceu com Tiradentes.

Foi um tempo de desenvolvimento;
a indústria instalou-se no Brasil:
aço, carro, trator, barco, cimento,
o petróleo jorrou, e o mundo viu
o país andar firme, qual gigante,
e não mais um gigante adormecido
e deitado em seu leito deslumbrante;
era forte, veloz e destemido
e no esporte também reconhecido
o maior futebol que o mundo viu.

Mas Brasil é Brasil, é sempre assim:
anda forte e veloz, logo depois
retrocede, faz cera, joga ruim,
perde tudo que fez num ano ou dois.
Foi assim com a era JK,
que levou Capital lá pro Planalto
em seu jeito veloz de governar
e ensinou o Brasil a jogar alto;
em seguida, descendo num só salto,
embicamos com o carro antes dos bois.

Veio um outro agitando uma vassoura
e, tentando o país moralizar,
foi usando a caneta e a tesoura
e errou no que era pra cortar,
pois, errando a medida do poder,
ao Congresso enviou um ultimato,
acusou o que não se pode ver
e encerrou, co’um bilhete, o seu mandato;
ao país só restou olhar o fato
e ver crise em poder se consumar

pois o vice era tido comunista
e ameaça ao poder constituído,
a vitória do mal era prevista
e podia o Brasil ser destruído.
O receio de ver o comunismo
assumir o poder no meu país
trouxe a nós um tal parlamentarismo,
um regime que nem o povo quis,
e eu, que era da vida um aprendiz,
não sabia o que tinha acontecido.

Pouco tempo depois, nova virada,
eu vi tanques nas ruas, vi fuzis,
vi soldados fazendo barricada
e também atirando nos civis;
eu pensei para mim: tudo mudou,
a Nação vai viver um novo dia,
a vitória do bem se consumou,
o Brasil vai sair dessa agonia;
eu não sei mais dizer o que é que eu via,
eu só era da vida um aprendiz.

Comecei minha luta aos dezesseis
e, bem antes de ter maioridade,
o trabalho integrou-se a mim de vez
e eu já era um servidor de verdade,
eu virei barnabé, mas o salário
até hoje eu espero melhorar;
não existe o bom tempo ao funcionário,
o dinheiro é difícil de ganhar,
vem minguado, suado, devagar,
e o aumento, que é bom, só chega tarde.

Eu pensava em votar pra presidente,
eu sonhava em tornar-me um eleitor;
rapaz pobre, estudante adolescente,
uma vida a viver, muito vigor,
aos dezoito eu prestei vestibular
e entrei de uma vez na faculdade
e o direito que eu tinha de votar
foi deixado pra trás, pois, na verdade,
o regime empurrou pra bem mais tarde
esse sonho embalado em meu verdor.

Eu vibrei com a tal revolução:
o regime mudou, mas pra melhor,
dessa vez o destino da Nação
foi traçado pelo Estado Maior.
Mas o tempo passou, tudo mudou,
e o regime, que era temporário,
avançou nos direitos, se fincou,
perseguiu o doutor e o operário,
encolheu, lentamente, meu salário
e manteve o poder, o status quo.

Vi colega perder a liberdade
em defesa do modo de pensar;
no entanto, eu achava que a verdade
era outra e ficava a meditar:
como é que uma cara inteligente
e que tem tanta vida pra viver
vai cair nesse conto ingenuamente
e não vê o que pode acontecer?
Tudo aquilo, no meu modo de ver,
era errado, era mau, irregular.

Mas o mau, o errado, irregular
na verdade era tudo que eu não vi,
pois não vi o regime torturar
e o clamor dos porões eu não ouvi;
não ouvi ou fingi não escutar,
não deixei se apossar da minha vida
a vontade incontida de mudar
uma coisa pra mim não percebida;
eu vivia uma vida bem vivida,
ou pensava vier, mas não vivi.

No viger do AI5 eu me casei,
me formei, terminei a faculdade
e, canudo na mão, continuei
a viver minha própria liberdade.
Os porões insistiam na tortura,
a guerrilha vivia em submundo,
e o comando geral da ditadura
era duro demais com todo mundo;
o país escutou clamor profundo
e eu passei a enxergar toda a verdade.

Com o tempo passando, o povo viu
seu direito de novo retornar,
o governo passou para um civil,
aumentou esperança de votar,
escolher presidente e acabar,
extinguir, de uma vez, a ditadura;
assegura o ditado popular
que água mole, caindo em pedra dura,
assim bate, rebate, até que fura
e depois continua a caminhar.

Hoje sou indivíduo quarentão,
o cabelo grisalho apareceu,
já estou me cansando do bordão
que me diz que o país empobreceu
e precisa de imposto pra pagar
a despesa que tem com o servidor
e por isso eu preciso de aumentar
o desconto do ganho com o labor;
já não sei quem é pobre e sofredor,
se o país, o governo, ou se sou eu.

Concluí o meu sonho, finalmente,
eu me vi, uma vez, realizado;
escolhi pelo voto o presidente...
e me sinto decepcionado:
o país mergulhou na recessão
mas o saldo de alguns multiplicou,
eu voltei a escutar mesmo bordão,
meu salário de novo congelou;
o meu sonho de vez desmoronou
pois até presidente é ladrão.

Eu guardei meu dinheiro mês a mês
pra poder ter um pouco no futuro
e esse cara me toma ele de vez,
de uma hora pra outra eu fico duro
e não vejo maneira de rever
o dinheiro que o homem me tomou;
o que é meu já fugiu do meu poder:
a poupança que fiz se evaporou,
o salário encolheu, se degradou,
vitimado que foi por roubo puro.

Eu entrei numa fossa, fiquei triste
e quedei-me a pensar o que é que eu faço;
esse cara nos vem de dedo em riste
e nos faz novamente de palhaço.
Inda bem que a justiça não tardou
e o Congresso implantou a CPI,
do Planalto ele logo se afastou,
hoje está sem função, sem “pedigree”,
mas a grana ele já levou daqui
e de novo pergunto: o que é que eu faço?

Que é que eu faço com o resto que ficou
pois ainda tem muita corrução,
inda tem deputado e senador
pondo a mão no dinheiro da nação.
Passo horas pensando nisso tudo,
eu não sei onde paro, onde é que fico,
e, se nego o meu voto e fico mudo,
eu ajudo esse grupo a ficar rico
e o mais pobre a penar, viver de bico,
aumentando a miséria e a recessão.

O que faço com a falta de dinheiro,
o que faço com toda essa inflação?
Grito alto, em bom tom, pro mundo inteiro
e não ouço em resposta explicação
pra o país se enfiar nessa agonia
e seu povo não ter onde arranjar
um pedaço de pão, nem bóia fria,
e amargar outro mês sem trabalhar;
é miséria demais pra se agüentar
e eu não sei até quando agüento, não!

Meu salário não mata a minha fome,
água e luz vou pagar não sei com que,
na primeira semana a grana some,
o buraco no bolso é pra valer.
Mas os homens nos dizem pra ajudar
o país a acabar co’a inflação,
e eu pergunto: como é que vou pagar
o danado carnê da habitação,
se o dinheiro não dá mais nem pro pão?
Me responda: o que é que eu vou fazer?

Que fazer pra pagar o hospital,
se saúde eu devia ter de graça
e o governo, se paga, paga mal?
Eu não sei mais dizer o que se passa
e me ponho a pensar na educação,
outra área esquecida no Brasil:
relegada, carente, amarga o pão
que o regime da farda produziu,
ensinando a linguagem do fuzil,
destruindo a cultura de uma raça.

A escola está cara, o ensino ruim,
os meus filhos reclamam com razão
e eu me lembro, saudoso, do latim,
do desenho, das aulas de orfeão,
tempos bons que recordo com saudade
ao notar tantas falhas no ensino
e inda ter que pagar mensalidade.
Eu recordo os meus tempos de menino
e me ponho a cantar... cantar um hino...
Hoje em dia não tem mais hino, não!

No trabalho eu escuto comentário
a respeito do imposto que aumentou,
novamente o infeliz funcionário
é quem paga a despesa que estourou.
Ao invés de olhar para essa gente,
o Congresso só pensa em mordomia
e aumenta o seu ganho, indiferente
ao clamor do eleitor, à carestia,
e eu me ponho a pensar, com agonia,
onde foi que meu sonho se acabou.

Foi-se o sonho com a falta de dinheiro,
acabou-se na última eleição,
eu aqui, trabalhando o tempo inteiro,
e eles lá, a ganhar imensidão...
Presidente a roubar do meu salário,
o Congresso a gritar, querendo mais,
a fazer todo mundo de otário,
ajudando o Brasil andar pra trás;
acabou-se de vez a minha paz,
o meu sonho se foi, não volta, não.

Fim de tarde, de volta do trabalho,
eu folheio de novo o meu jornal;
quando leio a notícia, me atrapalho
e começo a suar, passando mal:
o Congresso quer logo um plebiscito
ao invés de cuidar da educação,
da saúde do povo e, acredito,
até mesmo transporte e habitação;
quer formar gabinete e pôr a mão
no poder da nação, ponto final.

E me ponho de novo a meditar,
sete horas da noite, já cansado;
eu não sei onde isso vai parar,
já me vejo outra vez desenganado.
E termino essa história bruscamente,
uma história que eu vivenciei;
escrevi esses versos de repente
e no fim descobri que me enganei,
pois também gabinete já formei,
mas o meu é martelo agalopado.
Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 27/03/2005
Alterado em 05/10/2011


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