E eu só queria votar...
Sete horas da noite, eu chego em casa e me deito, cansado, no sofá; a notícia que ouço me arrasa e me prostro, exaurido, a meditar que essa vida que levo é uma tortura, o dinheiro que ganho é porcaria, entretanto eles vivem na fartura e inda dizem que ganham mixaria; eu não sei se, com isso, eu chore ou ria e decido escrever o meu penar. Nasci pobre, de prole numerosa; o meu pai, um rapaz trabalhador que no ano de trinta uma formosa e prendada donzela desposou, teve dúzia de filhos, seis casais, criou dez na pobreza e na decência (o oitavo fui eu, quinto rapaz, outras duas findaram a descendência) e, nos vendo alcançar independência, atirou-se ao estudo e se formou. Minha infância foi simples, mas vivida, eu cresci com saúde, com vigor, mas a grana era pouca, era medida, e bem cedo ingressei no meu labor pra pagar meu estudo em boa escola e sobrar uns trocados pro lazer, mas, malandro, eu também jogava bola e deixava outras coisas por fazer; uma vida bem simples de viver e um futuro almejado com fervor. Nesse tempo o Brasil todo mudou: “Capital era Rio mas, de repente, o Planalto Central se transformou pra cumprir decisão do presidente e passou a ter nova Capital; nordestino foi logo convocado, avião transportou areia e cal para que se cumprisse o decretado; em abril se escolheu um feriado e Brasília nasceu com Tiradentes. Foi um tempo de desenvolvimento; a indústria instalou-se no Brasil: aço, carro, trator, barco, cimento, o petróleo jorrou, e o mundo viu o país andar firme, qual gigante, e não mais um gigante adormecido e deitado em seu leito deslumbrante; era forte, veloz e destemido e no esporte também reconhecido o maior futebol que o mundo viu. Mas Brasil é Brasil, é sempre assim: anda forte e veloz, logo depois retrocede, faz cera, joga ruim, perde tudo que fez num ano ou dois. Foi assim com a era JK, que levou Capital lá pro Planalto em seu jeito veloz de governar e ensinou o Brasil a jogar alto; em seguida, descendo num só salto, embicamos com o carro antes dos bois. Veio um outro agitando uma vassoura e, tentando o país moralizar, foi usando a caneta e a tesoura e errou no que era pra cortar, pois, errando a medida do poder, ao Congresso enviou um ultimato, acusou o que não se pode ver e encerrou, co’um bilhete, o seu mandato; ao país só restou olhar o fato e ver crise em poder se consumar pois o vice era tido comunista e ameaça ao poder constituído, a vitória do mal era prevista e podia o Brasil ser destruído. O receio de ver o comunismo assumir o poder no meu país trouxe a nós um tal parlamentarismo, um regime que nem o povo quis, e eu, que era da vida um aprendiz, não sabia o que tinha acontecido. Pouco tempo depois, nova virada, eu vi tanques nas ruas, vi fuzis, vi soldados fazendo barricada e também atirando nos civis; eu pensei para mim: tudo mudou, a Nação vai viver um novo dia, a vitória do bem se consumou, o Brasil vai sair dessa agonia; eu não sei mais dizer o que é que eu via, eu só era da vida um aprendiz. Comecei minha luta aos dezesseis e, bem antes de ter maioridade, o trabalho integrou-se a mim de vez e eu já era um servidor de verdade, eu virei barnabé, mas o salário até hoje eu espero melhorar; não existe o bom tempo ao funcionário, o dinheiro é difícil de ganhar, vem minguado, suado, devagar, e o aumento, que é bom, só chega tarde. Eu pensava em votar pra presidente, eu sonhava em tornar-me um eleitor; rapaz pobre, estudante adolescente, uma vida a viver, muito vigor, aos dezoito eu prestei vestibular e entrei de uma vez na faculdade e o direito que eu tinha de votar foi deixado pra trás, pois, na verdade, o regime empurrou pra bem mais tarde esse sonho embalado em meu verdor. Eu vibrei com a tal revolução: o regime mudou, mas pra melhor, dessa vez o destino da Nação foi traçado pelo Estado Maior. Mas o tempo passou, tudo mudou, e o regime, que era temporário, avançou nos direitos, se fincou, perseguiu o doutor e o operário, encolheu, lentamente, meu salário e manteve o poder, o status quo. Vi colega perder a liberdade em defesa do modo de pensar; no entanto, eu achava que a verdade era outra e ficava a meditar: como é que uma cara inteligente e que tem tanta vida pra viver vai cair nesse conto ingenuamente e não vê o que pode acontecer? Tudo aquilo, no meu modo de ver, era errado, era mau, irregular. Mas o mau, o errado, irregular na verdade era tudo que eu não vi, pois não vi o regime torturar e o clamor dos porões eu não ouvi; não ouvi ou fingi não escutar, não deixei se apossar da minha vida a vontade incontida de mudar uma coisa pra mim não percebida; eu vivia uma vida bem vivida, ou pensava vier, mas não vivi. No viger do AI5 eu me casei, me formei, terminei a faculdade e, canudo na mão, continuei a viver minha própria liberdade. Os porões insistiam na tortura, a guerrilha vivia em submundo, e o comando geral da ditadura era duro demais com todo mundo; o país escutou clamor profundo e eu passei a enxergar toda a verdade. Com o tempo passando, o povo viu seu direito de novo retornar, o governo passou para um civil, aumentou esperança de votar, escolher presidente e acabar, extinguir, de uma vez, a ditadura; assegura o ditado popular que água mole, caindo em pedra dura, assim bate, rebate, até que fura e depois continua a caminhar. Hoje sou indivíduo quarentão, o cabelo grisalho apareceu, já estou me cansando do bordão que me diz que o país empobreceu e precisa de imposto pra pagar a despesa que tem com o servidor e por isso eu preciso de aumentar o desconto do ganho com o labor; já não sei quem é pobre e sofredor, se o país, o governo, ou se sou eu. Concluí o meu sonho, finalmente, eu me vi, uma vez, realizado; escolhi pelo voto o presidente... e me sinto decepcionado: o país mergulhou na recessão mas o saldo de alguns multiplicou, eu voltei a escutar mesmo bordão, meu salário de novo congelou; o meu sonho de vez desmoronou pois até presidente é ladrão. Eu guardei meu dinheiro mês a mês pra poder ter um pouco no futuro e esse cara me toma ele de vez, de uma hora pra outra eu fico duro e não vejo maneira de rever o dinheiro que o homem me tomou; o que é meu já fugiu do meu poder: a poupança que fiz se evaporou, o salário encolheu, se degradou, vitimado que foi por roubo puro. Eu entrei numa fossa, fiquei triste e quedei-me a pensar o que é que eu faço; esse cara nos vem de dedo em riste e nos faz novamente de palhaço. Inda bem que a justiça não tardou e o Congresso implantou a CPI, do Planalto ele logo se afastou, hoje está sem função, sem “pedigree”, mas a grana ele já levou daqui e de novo pergunto: o que é que eu faço? Que é que eu faço com o resto que ficou pois ainda tem muita corrução, inda tem deputado e senador pondo a mão no dinheiro da nação. Passo horas pensando nisso tudo, eu não sei onde paro, onde é que fico, e, se nego o meu voto e fico mudo, eu ajudo esse grupo a ficar rico e o mais pobre a penar, viver de bico, aumentando a miséria e a recessão. O que faço com a falta de dinheiro, o que faço com toda essa inflação? Grito alto, em bom tom, pro mundo inteiro e não ouço em resposta explicação pra o país se enfiar nessa agonia e seu povo não ter onde arranjar um pedaço de pão, nem bóia fria, e amargar outro mês sem trabalhar; é miséria demais pra se agüentar e eu não sei até quando agüento, não! Meu salário não mata a minha fome, água e luz vou pagar não sei com que, na primeira semana a grana some, o buraco no bolso é pra valer. Mas os homens nos dizem pra ajudar o país a acabar co’a inflação, e eu pergunto: como é que vou pagar o danado carnê da habitação, se o dinheiro não dá mais nem pro pão? Me responda: o que é que eu vou fazer? Que fazer pra pagar o hospital, se saúde eu devia ter de graça e o governo, se paga, paga mal? Eu não sei mais dizer o que se passa e me ponho a pensar na educação, outra área esquecida no Brasil: relegada, carente, amarga o pão que o regime da farda produziu, ensinando a linguagem do fuzil, destruindo a cultura de uma raça. A escola está cara, o ensino ruim, os meus filhos reclamam com razão e eu me lembro, saudoso, do latim, do desenho, das aulas de orfeão, tempos bons que recordo com saudade ao notar tantas falhas no ensino e inda ter que pagar mensalidade. Eu recordo os meus tempos de menino e me ponho a cantar... cantar um hino... Hoje em dia não tem mais hino, não! No trabalho eu escuto comentário a respeito do imposto que aumentou, novamente o infeliz funcionário é quem paga a despesa que estourou. Ao invés de olhar para essa gente, o Congresso só pensa em mordomia e aumenta o seu ganho, indiferente ao clamor do eleitor, à carestia, e eu me ponho a pensar, com agonia, onde foi que meu sonho se acabou. Foi-se o sonho com a falta de dinheiro, acabou-se na última eleição, eu aqui, trabalhando o tempo inteiro, e eles lá, a ganhar imensidão... Presidente a roubar do meu salário, o Congresso a gritar, querendo mais, a fazer todo mundo de otário, ajudando o Brasil andar pra trás; acabou-se de vez a minha paz, o meu sonho se foi, não volta, não. Fim de tarde, de volta do trabalho, eu folheio de novo o meu jornal; quando leio a notícia, me atrapalho e começo a suar, passando mal: o Congresso quer logo um plebiscito ao invés de cuidar da educação, da saúde do povo e, acredito, até mesmo transporte e habitação; quer formar gabinete e pôr a mão no poder da nação, ponto final. E me ponho de novo a meditar, sete horas da noite, já cansado; eu não sei onde isso vai parar, já me vejo outra vez desenganado. E termino essa história bruscamente, uma história que eu vivenciei; escrevi esses versos de repente e no fim descobri que me enganei, pois também gabinete já formei, mas o meu é martelo agalopado. Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 27/03/2005
Alterado em 05/10/2011 |