Trabalha, Adão
Trabalha, Adão, trabalha,
trabalha pra te manter, gasta logo teu salário pr’a inflação não comer. Trabalha de madrugada, vai até o sol se pôr. Trabalha, Adão, mais um pouco porque com o teu labor tu recebes um salário pequenino todo mês, que vai logo se acabando, até sumir de uma vez. Não esperes logo aumento, te acostuma com o que tens; logo, logo, teu salário não vai dar para os teréns, pois não dá pra acompanhar o apetite da inflação. Mas que se há de fazer? Trabalha, trabalha, Adão! Todo mês tu ganhas menos, todo mês tu gastas mais e a inflação vai comendo pouco a pouco a tua paz. Mas ainda tens trabalho e inda podes trabalhar. O que poderás fazer se tiveres que parar por alguma contingência de saúde ou social? Como vais pagar o pão, o café e o mingau, esse mingau de farinha que engana a tua fome? Por isso, se ganhas pouco e a doença te consome, não podes abrir a guarda e descansar mais um pouco, pois, se o dinheiro te falta, findarás ficando louco, morrerás de inanição, diarréia ou anemia, com a danada da fome a te matar dia a dia. Trabalha, Adão, trabalha, e segura teu emprego, mesmo que o teu salário só te dê desassossego. Não recebes em mil-réis nem tampouco em cruzeiros; recebias em cruzados, que deixou de ser dinheiro pra ser cruzado no queixo que te levou a nocaute; com o pouco que recebes terás que fazer biscates pra completar o salário e ver se sobra um trocado pra dar lazer e descanso para o teu corpo cansado de trabalhar como um cão, sem horizonte na vida. Mas Adão, trabalha mais, pois tua vida sofrida é talvez tudo que resta a ti nesse mundo-cão de miséria e sofrimento; por isso, trabalha, Adão, pois tu tens mulher e filho pra vestir e pra comer; educação e saúde? Nem pensar! O que fazer? Como pagar uma escola com esse pouco dinheiro que tu ganhas com suor e que gastas por inteiro nas tuas necessidades de comer, vestir, andar? Adão, tu não tens saída, precisas de trabalhar. Mas cuidado, Adão amigo! Se precisas de hospital pra te restabelecer, podes até te dar mal: vais esperar numa fila, vais receber uma senha, e vais curtir tua dor, torcer pra que o doutor venha e te receite um remédio que te restaure o vigor. Mas... Adão, cadê dinheiro? Me responde, por favor! O dinheiro tu não tens e o remédio custa caro, e se vais à previdência reclamar o seu amparo, tu vais ficar mais doente com tanta judiação. Mas tu tens que trabalhar; por isso, trabalha, Adão, segue avante tua sina, lava o rosto com suor para ver se ganhas pão ou se vem dia melhor com mais dinheiro no bolso e o corpo descansado; mas pra isso, Adão amigo, terás que ser deputado pra ganhar sem trabalhar e inda mexer com o dinheiro que, por lei e por justiça, é do povo brasileiro, como tu, meu caro Adão, que trabalhas pra viver; mas, pra ter o que é teu, tu trabalhas de morrer, ou morres de trabalhar, enquanto muitos corrutos ficam a passar a mão no dinheiro do instituto, aquele pra que tu pagas para aposentadoria e que devolve depois com pequena mixaria após trinta e cinco anos de uma luta sem cessar; Mas, Adão, toma cuidado, pois eles querem mudar também esse teu direito mas eles... ah! eles não, só trabalham quatro anos pra depois botar a mão numa poupança polpuda que saiu do teu labor, e acham ruim, acham pouco, dizem que fazem favor com o dinheiro que recebem - essas tais subvenções - mas, se for pra trabalhar, querem logo seus jetons. Trabalha, Adão, trabalha, mantém o olhar arguto pra não caíres também no amparo do instituto, pois, se tua sina é ruim se inda podes trabalhar, se fores pra previdência, com certeza vais parar e, se tu paras, nem penses no que vai te acontecer. Trabalha, Adão, trabalha, trabalha pra te manter. 25/10/1993
Paulo Camelo
Enviado por Paulo Camelo em 30/03/2005
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